Às margens da Via Dutra, a cruz de Francisco Alves

Em Pindamonhangaba, o bairro Pinhão do Una ainda é conhecido como "Chico Alves" pelos mais antigos


Quem viaja pela Via Dutra, no sentido Rio de Janeiro, via antigamente uma pequena cruz com um violão pendurado. Hoje, o mato alto esconde o modesto oráculo dedicado pelo grupo de fãs que, cada vez em menor número obviamente, durante anos venerou no local a memória daquele que representou a magnitude dos tempos do rádio e teve a vida ceifada por um acidente automobilístico, em terras de Pindamonhangaba.

Os tempos eram outros, a música era outra, mais dolente, instrumental acompanhados de afinadíssimo coral. Os cantores, de absurdo alcance vocal, cantavam com vibrato (técnica sonora usando o diafragma) e dominavam as multidões entoando serenatas e sambas. O português falado na época ainda trazia resquícios de uma quase erudição. Além disso, a dicção perfeita e hoje extinta não carregava tanto os "erres" como se ouve agora, principalmente no Estado do Rio de Janeiro.

Foi nesse cenário que brilhou um homem alto e esguio. Nascido na Rua do Acre, centro do Rio de Janeiro e filho de José Alves e Isabel Moraes, imigrantes portugueses. Logo, se destacaria ainda menino nas ruas da então capital federal, cantando para os que passavam. Com isso, defendendo alguns trocados. Jose, seu pai, detestava a idéia de o filho ser cantor e ameaçou dar-lhe uma coça. O menino então fugiu de casa.

Carreira - Começou a cantar profissionalmente aos 19 anos com apresentações no Pavilhão do Méier onde foi contratado após um teste feito com o maestro Antônio Lago, pai de Mário Lago. Também se apresentou no Circo Spinelli e fez parte de uma companhia artística que logo se dissolveu, com a chegada na cidade da pandemia de gripe espanhola.

Passou a trabalhar como chofer de taxi durante o dia e cantava à noite. E foi na noite que conheceu sua primeira esposa, Perpétua Guerra Tutoya. Casou-se com ela, contra a vontade da família, mas vida desregrada de Perpétua pôs fim ao casamento em apenas duas semanas. Mais tarde, casaria-se com a cantora chilena Célia Zenatti com quem viveu até 1948, quando se envolveu com Iraci Alves, bem mais nova que ele.

Eram tempos difíceis, mas em 1919, Francisco Alves viria a gravar pelo novo selo chamado Popular. E daí em diante, reinou como o maior nome da música brasileira que naquele período estava ainda em formatação. Francisco Alves, apelidado "Rei da Voz" pelo locutor César Ladeira, ajudou a fixar o samba, um ritmo novo criado no bairro do Estácio. Revelou então os grandes compositores negros como Sinhô, Donga, Ismael Silva, Pixinguinha.

Também teve grande parceria com um jovem branco de classe média de Vila Isabel, que viria ser o grande Noel de Medeiros Rosa. Na sua trajetória de grande astro da música brasileira, gravou cerca de 1000 discos e participou de inúmeros filmes, sempre com números musicais, como "Laranjas da China" e "Berlim na Batucada". 

Não bebia e nem fumava, mas gostava de futebol e era tido como galanteador junto às mulheres. Seus amigos da época diziam que Chico Alves era um tanto pão-duro e de temperamento forte, inclusive, com a fama de ser bom de briga e não levar desaforo pra casa. Mas, havia duas coisas que Francisco Alves gostava demais, além da música: corrida de cavalos e o time América do Rio de Janeiro.

Tragédia nacional - No dia em que morreu, Francisco Alves vinha de São Paulo, onde realizara um grande show, no Largo da Concórdia em homenagem às crianças. Era o dia de Cosme e Damião e o cantor dedicou na data seu novo disco (que seria o último) aos pequenos abrigados na Casa de Lázaro. O cantor queria chegar mais cedo ao Rio a tempo de ver o jogo do América, seu time do coração.

Os planos de sair mais cedo da capital paulista deram errado. O carro de Francisco Alves, um Buick sedan, ano 50 - verdadeiro bólido para a época - teve um problema e não ficou pronto pela manhã na oficina. Assim, o cantor saiu de São Paulo à tarde. E a fatalidade o esperava pelo caminho, como que a perpetuar o trecho da última canção que cantou: "Caminhemos, talvez nos vejamos depois!".

Um ônibus do Expresso Brasileiro passava por Pindamonhangaba por volta das 17h30, período complicado para quem está na direção de um carro, o chamado crepúsculo. O condutor do ônibus seguia para São Paulo e viu pelo retrovisor quando um caminhão e um carro esporte azul se chocam violentamente. O carro era o Buick do cantor, que capota várias vezes e se incendeia. Francisco Alves morreu carbonizado.

O fim de uma era - Ao lado do cantor viajava o sobrinho Haroldo Alves, que foi ejetado do carro no momento da colisão. Foi por meio dele que todos ficaram sabendo, naquele momento, que a vítima era o "Rei da Voz". Em poucos minutos, a Rádio Nacional do Rio de Janeiro e o Repórter Esso já estavam divulgando para todo o Brasil a notícia da morte. Uma tragédia nacional, só comparada nos dias atuais à perda de Ayrton Sena.

Do Rio de Janeiro, uma comitiva da Rádio Nacional partiu rumo à Pindamonhangaba para recolher os restos mortais de Francisco Alves. Na delegacia da cidade, a urna aguardava a enorme caravana carioca, liderada pelo locutor Aurélio de Andrade. No trajeto até o Rio de Janeiro, em quase toda a sua extensão, pessoas esperavam à margem da via Dutra para dar o seu último adeus ao cantor. Mulheres jogavam flores sobre a urna mortuária.

Na Cinelândia passaram mais de meio milhão de pessoas para a despedida ao ídolo. Lágrimas, desmaios, gritos, vindos de pessoas de todas as raças e classes sociais. A urna ficou no salão da Câmara Municipal até segunda-feira (29) e foi transportada pelo Corpo de Bombeiros. O Rei da Voz foi sepultado no Cemitério São João Batista, bairro de Botafogo.

Francisco Alves morreu no auge e deixou o maior legado que um artista pode deixar para seu país. Depois de sua partida, a música estrangeira aproveitou um vácuo que antes era impensável. Hoje, a única lembrança de Francisco Alves, ainda pode ser vista às margem da via Dutra: uma singela cruz, em um cantinho no Pinhão do Una. Para os que ainda estão vivos e revivem a perda, era um sábado, 27 de setembro de 1952.